Era uma vez um contador de estórias

* Cássia Gomes, Edson Machado e Lucimara Savi

"Ei, ei, você é o contador de estórias? Desculpe te parar aqui na rua, mas é que se eu perder esta chance não sei como te encontrar."

"Não tenho nenhum cartão, estávamos justamente conversando sobre isso, eu não sei fazer minha propaganda, mas tenho um papel". Lentamente e um pouco sem jeito procurou mais de uma vez no mesmo bolso o papel que ele colocaria seu telefone e e-mail, tão de vagar como a sua fala mansa. E foi sobre o livro Histórias Sagradas, de Charles Simpkinson e Anne Simpkinson, que escreveu seu contato.

A pá que lavra

Era uma vez um contador de histórias. Na verdade, ainda é, pois não morreu.

Sua voz grave e pontuada leva a crer que sempre está contando uma estória. A voz não existe sem a respiração. Os pulmões são responsáveis pela propulsão do ar. Mas os alvéolos estão escuros. Que escuridão está aqui! Foi o tabaco que o deixou assim, tão sujo. Agora me lembro, já deveria ter imaginado. Seus dedos também estão manchados pelo cigarro. Amarelos. Os mesmos dedos que discretamente retiram todo o fumo daquele beija-flor com chifres e os guarda cuidadosamente para não sujar a rua. Um paradigma.

A voz vem das cordas vocais, que ficam perto do coração. Neste contador de estórias, as emoções que passam pelo coração são gravadas. Saber de cor não é saber palavra por palavra é saber de coração. Recordar é passar de novo pelo coração. Existe um lugar indeterminado, parece estar entre os ventrículos, não tem como definir fisicamente, mas um tanque de combustível está ali. O movimento é alimentado por retornos. É, retornos das pessoas que lembram do contador e de suas estórias. Várias formas de retornos o fazem continuar contando estórias. Os mais poderosos são das pessoas que ouviram contar estórias em penitenciárias, hospitais e outros locais onde o público está mais necessitado de atenção.

Aqui, no cérebro do contador de estórias, tem muitas sinapses ocorrendo do lado direito, mas o esquerdo parece que não tem vida. Estou vendo uma portinha que está escrito ‘organização’, mas quase sempre ele não sabe onde pôs a chave. Vive num mundo real, mas não entende muito bem por que as coisas são como são. As estórias ajudam a entender melhor este mundo. Estamos cercados de mistérios. As estórias têm mistérios. Em algum lugar do contador existe também a intuição. Esta não sei onde fica, mas conta algumas estórias sem saber por que.

Vejo um ‘departamento de busca’, parece moléculas de água em ebulição. Há muito movimento e parece que não vai parar tão cedo.

Os olhos são um misto de azul e castanho. São diferentes, pois parecem enxergar além do que os olhos vêem. Olhar profundo e atento. Está ligado diretamente ao tanque de combustível, lá entre os ventrículos.

Hei, parece que está tremendo!

O que está acontecendo?

Ah, claro, vai começar mais uma contação de estórias. Ele sempre fica assim.

O ‘departamento de busca’ começa a se agitar ainda mais. Não tenho onde me esconder. Estas moléculas vão me atingir.

Quase um minuto de tremedeira e pára, mas a busca continua ainda mais intensa.

Ele fala e conta. São palavras. Palavras escolhidas e propositadamente colocadas nos lugares corretos.

Ouço uma voz. Não é dele nem minha. Diz: “a busca é pela palavra”.

Agora sei o que busca, mas não sei o que significa.

A voz: “procure na intuição”.

Mas eu nem sei onde fica isso!!!

“É um sentimento que fica no imaginário”

Eu não tenho acesso a isto. Vou perguntar para o contador, depois que ele terminar esta contação.

Então contador o que é a busca pela palavra?

É deixar a palavra contar a estória sem intervenção de gestos ou interpretação. Quanto menos intervir melhor. As pessoas fixam a atenção na estória e imaginam tudo por elas mesmas. É uma busca constante, nunca acaba. Palavra, a pá que lavra nossa vida.

Carlos Daitshman, agora que você terminou esta contação. O que você vai fazer?

Eu moro sozinho e já que o André, meu filho, foi cuidar da sua vida profissional e está morando na casa da mãe, vou a pé para casa ver como está o Deutsh, meu cachorro.

* O texto acima foi escrito com parte de avaliação da disciplina de Revista, sob orientação do professor Victor Folquening, no segundo semestre de 2007.

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