Reflexões sobre documentários

Durante todo o mês de setembro o fotógrafo, documentarista e professor das matérias de Fotografia e Cinema da EMBAP (Escola de Música e Belas Artes), Roberto Pitella, conduziu conversas sobre a produção de documentários. As conversas, realizadas nas noites de terças-feiras, englobavam tanto a produção quanto a qualidade do material atualmente produzido no formato de vídeo documental. As conversas realizadas no Espaço Cultural Cinevídeo, anexo a vídeo-locadora Vídeo1, bastante conhecida na região por ser a locadora curitibana mais antiga, contaram com a presença de atores, cineastas, estudantes, jornalistas e amantes de produções cinematográficas, que passavam suas experiências, impressões e incitavam discussões em torno da produção documental brasileira.

A primeira semana foi dedicada a uma grande e longa discussão sobre o que é documentário e como este tipo de produção é vista pelos espectadores, amantes ou não deste tipo de material.O centro de toda esta discussão foi uma famosa frase de Shakespeare: “Tudo é aprendido”, que foi companheira de todas as discussões semanais. Por meio de exibição de documentários famosos e experimentais, Pitella levou a todos a refletir sobre alguns assuntos que vão além do que estava sendo exibido na tela. O início de todas estas conversas foi indagar aos que lá estavam de por que os produtores de documentários se apresentam como documentaristas e não como cineastas. A resposta, quase um consenso geral, foi de que primeira impressão que se tem de documentários é que se trata de filmes banais e sem muito sentido, enquanto cineastas trabalham com altos investimentos e histórias que podem ir além do cotidiano, coisa que o documentário é perito em abordar. Para muitos a produção de um filme engloba uma relação de poder e imagem, mas não é documental, o que de certa forma é um pensamento equivocado. Não se pode negar que a recente produção sobre os últimos momentos de Hitler é documental. O filme “A Queda! As Últimas Horas de Hitler”, produzido em 2004, com direção de Oliver Hirschbiegel, foi o filme mais caro já realizado na Alemanha, com investimento de € 13,5 milhões, e, no entanto, é considerado um dos filmes mais documentais dos últimos tempos, sendo que até sua produção foi influenciada por um documentário, chamado "Eu Fui a Secretária de Hitler" (2002), que consistia basicamente em uma série de entrevistas com a recém-descoberta Traudl Junge, uma mulher da Bavária que serviu como secretária do ditador Adolph Hitler nos últimos tempos de seu governo, já na decadência e fim da Segunda Guerra. O filme não era mais do que uma sucessão de depoimentos (um deles encerra este "A Queda"), mas, por ser árido, foi muito pouco assistido. “Eu Fui a Secretária de Hitler” com certeza vai exatamente de encontro às idéias que muitos têm sobre o que é um documentário.

Para Pitella, um dos grandes problemas das produções de filmes documentais é por seus produtores se valerem de poucas verbas para produzirem materiais de baixo conteúdo. Para ele o mais grave e sério problema é a baixa qualidade de áudio e fotografia, gerando assim produtos sem beleza e sem atrativos, coisas que o público conseqüentemente passou a aceitar com grande facilidade, uma vez que acreditam que uma produção não tendo grande verba, como as produções hollywoodianas, não pode gerar material com boa qualidade. A função do documentário é construir idéias, amarrar histórias, descobrir potenciais fontes e apresentar da melhor forma e com a melhor qualidade, lembrando sempre que este será sempre um recorte da realidade somado às preferências de quem produz.

A segunda semana foi dedicada a discussão sobre identidade. Através dos documentários exibidos (“O Enigma de Kaspar Hauser”, de Werner Herzog; “Passageiro Profissão Repórter”, de Michelangelo Antonioni; e “Um Passaporte Húngaro”, de Sandra Kogut), Pitella levou a uma reflexão sobre as identidades das pessoas que participam e produzem documentários. Seria mesmo possível ágüem acreditar que a produção é uma representação verossímil do que o entrevistado pensa e acredita? Não estaria ele sendo influenciado por seu entrevistador? Um dos apontamentos feitos é que mesmo o entrevistado mais simples e humilde tende a, de alguma forma, parecer mais importante do que verdadeiramente é. Em “Teodorico, O Imperador do Sertão”, de Eduardo Coutinho, o entrevistador e o entrevistado é a mesma pessoa: Teodorico Bezerra, um coronel dono de muitas terras e gente. Com certeza as histórias que ele conta não poderiam ser contadas por ninguém além de ele mesmo, uma vez que, nos mostra através desta produção, que é capaz de dar ou tirar a vida. É uma representação da elite nordestina, com seus poderes, posses e machismos. No filme Teodorico mostra orgulhoso as frases que estão espalhadas pelas casas de seus empregados da fazenda: "Não é permitido beber, não é permitido jogar baralho, não é permitido fingir-se doente para não trabalhar...". Autoritário, Teodorico mostra com orgulho suas ferramentas de controle econômico e político, disserta sobre a importância do voto de cabresto, revela jogadas políticas para melhorar as condições de suas terras. O filme todo é esse observar cuidadoso de uma figura complexa e apaixonada pelo seu modo de vida. Nas poucas entrevistas com trabalhadores rurais, a presença do coronel se faz marcante e Coutinho permite que essa opressão se realize diante da câmera. O coronel pergunta: "Você acha que existe lugar melhor para se viver do que aqui?...", o empregado responde, "Não, claro que não". Mas, até que ponto se pode ter certeza de que esta figura que se apresenta no filme não se torna ainda mais austero diante da câmera para poder mostrar a quem o assiste apenas para demonstrar sua superioridade sobre seus subordinados?

A terceira semana cedeu lugar a discussão sobre subjetividade na produção documental. Ao contrário do que se acredita no jornalismo (marcado pela crença na verdade, subjetividade e imparcialidade), a produção documental vai de encontro às idéias do cineasta e proximidade com o tema abordado, sendo assim, a imparcialidade é um ponto altamente posto à prova, com altos índices de negação. Sendo que desta forma, a negociação pessoal sobre o tema e preferências, acaba por gerar uma recriação da realidade. Camila Nalino Fróis, em um estudo com o título: “O espaço para a subjetividade no cinema documentário: uma análise do filme ‘Promessas de Um Novo Mundo’”, apresentado GT de Audovisual, XII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste, diz que um exemplo disso “é o filme Promessas de um novo mundo (Promises), de Carlos Bolado, Justine Shapiro e B.Z.Goldberg, que retrata os conflitos do Oriente Médio a partir da perspectiva de crianças palestinas e israelenses. As crianças, "personagens" do filme, conhecem-se e tornam-se amigas a partir da proposta do diretor do documentário. Desta forma, relações humanas são criadas e transformadas pelo filme e para o filme[1].

Assim é possível percebermos, que não somente seu conhecimento sobre o assunto o leva a “tomar partido”, mas também a criar situações, fazer opções que julga serem melhores e que até mesmo decisões específicas e necessárias, como ângulos e formatos, são questões decisivas para contrariar os velhos, porém atuais, mandamentos do jornalismo.

O quarto e último encontro foi dedicado e exibição de alguns documentários, levando em consideração o poder que o documentário exerce, uma vez que ao representar a realidade, ou simulá-la, têm grande capacidade de convencimento de quem o assiste. É impossível negar que não ficamos chocados ao assistir os documentários de Michel Moore ou ao assistirmos “Super Size Me - A Dieta do Palhaço”, de Morgan Spurlock, já que o que mostra causa impacto e espanto. Jorge Campos, professor universitário e antigo jornalista da RTP, afirma que o documentário “é uma forma cinematográfica que está intimamente ligada às questões sociais, por estar vinculada ao real. Nesse sentido, tem sido reiteradamente utilizada como uma arma de arremesso, de persuasão, de denúncia e de convencimento das pessoas”[2].

As discussões continuarão a ser realizadas, porém, apenas uma vez por mês, pois o documentário vai muito além do que se pode imaginar, tanto em produção, impacto e resultados.



[1] Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2007/resumos/R0561-1.pdf
[2] Disponível em: http://fikepodcast.blogspot.com/2007/11/jorge-campos-o-poder-do-documentrio.html

Nenhum comentário: